domingo, 25 de dezembro de 2011

Uma luz que chegou de repente

Entre as tantas coisas maravilhosas que 2011 me deu, uma delas foi essa nova relação com a música. Porque eu sempre fui de samba, sempre cantei de brincadeira por aí. Mas Porto Alegre deixou eu imaginar mais, e imaginando é que você desafia o que está pré-estabelecido. É por isso que eu não acredito em destino. Porque eu gosto muito de imaginar.

Lamento-me todos os dias por não ter podido ver e ouvir Clara Nunes pessoalmente. Uma fatalidade terrível levou-a em 1983, quando eu tinha apenas 4 anos e ainda não sabia sambar. Ainda não havia para mim João Nogueira, Noel, Clementina, Adoniran. Mas alguma coisa acontece no meu coração desde que conheci a Clara nos discos.

A história toda de brincar de cantar aconteceu porque eu sempre pedia, a todas as rodas de samba que conhecia em São Paulo, para que tocassem "Conto de Areia". Nem sempre sabiam a letra. Aprendi a cantar para fazer a música constar do repertório de todo mundo. Em Brasília, com amigos, cantava Clara e João Nogueira - que eram, aliás, muito amigos. Um dia me ocorreu a ideia de que devia, já em Porto Alegre, promover uma homenagem a essa mulher que é uma grande inspiração pra mim e pra tanta gente. Vamos fazer um Tributo a Clara Nunes no mês de seu aniversário, propus ao querido Beto, do Comitê Latinoamericano. Bora. Ele topou.

Não era pra repetir, não era pra ter ideias a partir disso, não era pra se envolver. Era pra ter sido um episódio. Não foi. Tenho sorte de ter encontrado pessoas mára que também se sentem assim quanto ao samba, à música, à batucada. Tenho sorte de não ter me sentido tão ferida quando um ou outro(a) deixaram em entrelinhas o quanto é incômodo lidar com algo que está despertando. Claro, é muito mais fácil entrar no bonde andando. O bonde em que eu entrei mal saíra da estação e estava começando a trilhar seu caminho, um pouco inseguro, rumo a um destino incerto. E daí a incerteza do destino? O improviso é a alma do samba.

Aqui estou. Não para agradar a quem só gosta de coisa arrumada, mas vou tomando as providências cabíveis pra fazer isso bem... É porque não quero que a Clara se sinta constrangida por uma performance medíocre dia desses. Por outro lado, sei também que não precisa ter pressa, que as coisas se ajeitam, que o bonde encontra o rumo quando você encontrar. Eu sei que o samba é democrático, que cabe quem quiser sambar. Eu sei que o samba não é quadrado, "que não se ensina na escola". Ainda bem que, no caminho, aparece quem queira te ajudar, contribuir pra uma coisa que não é sua vontade egoísta, mas sim, um processo cultural envolvente. Ainda bem que nem todo mundo se incomoda com o despertar. Eu me apavoro é com a ideia de continuar adormecida.

Com isso, deixo um beijo em quem se identifica com o que está escrito aí acima. A quem apareceu na minha vida para ajudar a fortalecer isso. Inclusive, e talvez, principalmente, os amigos e amigas que foram assistir às apresentações, que gostaram da ideia, que apoiaram, que deram opiniões e que dançaram com a Feira de Mangaio. Foi inspirada por tudo isso aí que eu disse, que escrevi os versos do post anterior. Na certeza absoluta de que ninguém faz samba só por que prefere. E pedindo, todos os dias, a bênção de Clara Nunes. Saravá!

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Curto Pavio - o enredo do meu samba

Aí está, pessoal... A letra do meu primeiro samba, para a qual meu camarada Aquiles está compondo a música... Quero saber as opiniões!
Curto Pavio

Acorde,
Venha ouvir estes poucos acordes
Pra dizer que na vida e no samba
Não é tudo agora
Tudo tem sua hora
Futuro não morde

É cantando que eu vou te mostrar
Quem é mesmo de samba não foge
Nem de improviso
Nem de um aviso
Pisar devagar

Quem tem medo de se perder
É quem nunca vai se encontrar

Quem me conhece é que sabe, sou curto pavio
Eu que não fujo da dor, e nem de desvario
Não é dia nublado que vai me apavorar

Não fujo de ondas no mar, nem de curvas no rio
Não temo corte, má sorte, a noite ou o frio
Invento o dia de sol e começo a cantar

Vem ver,
Que o céu clareou, não vai chover
O povo ainda está sambando
Sem qualquer limite
Sem qualquer convite
E assim tem que ser

Acorde logo pra vir olhar
O samba é a majestade descalça
Vem sem permissão
Pisa em qualquer chão
De qualquer lugar

Eu nunca temi me perder
No samba eu vim me encontrar

Quem me conhece é que sabe, sou curto pavio
Eu que não fujo da dor, e nem de desvario
Não é dia nublado que vai me apavorar

Não fujo de ondas no mar, nem de curvas no rio
Não temo corte, má sorte, a noite ou o frio
Invento o dia de sol e começo a cantar

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Nada

E no final,
Se você nem me olhar
Nem reparar
Se descartar

Nada apagará
A certeza de que
O que não foi
Era o que devia ter sido.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Domingo de não-futebol

Não sou uma dessas pessoas que se sensibiliza com a morte de pessoas que nem conheço, e nem acho que morrer deve ser tão ruim assim. Detesto essa coisa da imprensa de ficar que nem urubu acompanhando a agonia de quem, como diz o Chicó de Ariano Suassuna, vai se encontrar com o único mal irremediável. É simples assim: se o tempo nos leva tudo, para o bem e para o mal, por que não haveria de levar o corpo? De novo chamando Suassuna, tudo que é vivo morre. Eu não acho que seria legal se todo mundo fosse eterno.

Mas, poxa, o Sócrates bem que podia ficar mais um pouco hein? Pra escrever mais, pra emprestar seu brilho pra esse opaco e mesquinho futebol brasileiro. Pra sempre nos lembrar da seleção de 1982 e o que deveria ter sido e não foi. Pra criticar as estupidezes fartas que se veem na cartolagem. Pra ser um lampejo de sobriedade - sim! - no meio dessa normalidade mórbida e acéfala. Pra gente poder imaginar que vai ser diferente. Pra gente perseguir isso.

Não vou me alongar. Só queria também me despedir do Doutor. Baita figura. Queria que ficasse mais tempo por aqui. Lembrei ontem, em conversa com amigos, de uma frase que li ainda criança, e nunca esqueci. "O mundo, depois de ti, há de ser algo melhor, porque tu viveste nele". Obrigada, Doutor. Por nos oferecer a melhor referência de que as coisas não precisam ser como são.


Pro Doutor

Ei doutor
Se a gente não se encontrar
A turma manda avisar
Que ninguém aqui desistiu da peleia

Quem sabe
Num passe de calcanhar
A gente consiga lançar
A fagulha que incendeia


E fazer tremer a arquibancada
Um lindo lance, uma bela jogada
Democracia não tem carta marcada
O jogo é vivo e o sangue está na veia


Ei doutor
Os refletores do estádio embaralham a vista
E talvez a gente não te veja mais
Nem possa te ler nos jornais
Mas sempre segue o show do artista

O que está feito não se perde
As palavras, gestos e gols
Tudo o que você começou
A gente sabe que prossegue


Vamos comemorar
Até o que nunca foi
O título de 82
O dia em que vamos derrotar
Aqueles que não nos deixam sonhar.

E na sua despedida
Nós vamos brindar:
Ainda bem que estiveste com a gente
E vamos levar, daqui pra frente
Nos nossos sonhos, seus sonhos também.

Se a gente não vai se ver
Nem escrever novas histórias
A gente guarda o que tem
Num bom lugar da memória
O que é imenso
Pra ser só um minuto
Pra ser só silêncio

Ei doutor
Eis o apito, a partida acabou
Mas a gente continua a conversa no bar
Xingar ou saudar
Pra comentar
Pra resistir
E ao fundo, ouvir:
A música ao vivo são harpas chorando.


O mundo, hoje, ficou um bocadinho pior.

sábado, 19 de novembro de 2011

Interromper?

Há cerca de 10 dias, uma ação da SMIC (Secretaria da Indústria e Comércio da Prefeitura de Porto Alegre) fechou 22 estabelecimentos na Cidade Baixa, bairro conhecido por atrair a boemia da cidade, pessoas interessadas em música, lazer, entretenimento. Diversos(as) artistas da noite portoalegrense têm se manifestado contra a arbitrariedade do ato, em defesa da livre circulação da cultura e em busca de soluções efetivas - e não artificiais - para os problemas encontrados, ou utilizados como justificativa para a ação autoritária. Peço que leiam o texto abaixo, e os(as) que concordarem com ele, por favor, me mandem seus nomes e RGs para o e-mail alessandraemtempo@gmail.com. Queremos recolher milhares de assinaturas até o próximo domigo, e apresentá-las num abaixo-assinado à Prefeitura.

"Mandou parar a cuíca é coisa dos hómi"
http://www.youtube.com/watch?v=8xNyeborZBc&feature=fvsr


***
"A raiva dá pra parar pra interromper"

A cultura é um patrimônio público, mas, infelizmente, há poucas instituições dispostas a preservá-la, fortalecê-la e democratizá-la. Embora a exaltação da cultura popular faça parte da maioria dos discursos de propaganda política em períodos eleitorais, há muito tempo não é possível observar na conduta da Prefeitura da Porto Alegre uma real preocupação com o tema.

Apoio à cultura não significa apresentar a cidade como sede de grandes eventos, ao qual a grande maioria dos porto-alegrenses não tem acesso devido aos altos preços. Apoio à cultura significa promover o contato do conjunto da população com bens culturais, tanto quanto incentivar a produção desses bens por parte da própria população. Em nenhum desses dois eixos o poder público municipal tem apresentado ação satisfatória.

Os artistas da Música Popular Brasileira em nossa cidade encontram diversos obstáculos para realizar seu trabalho. Embora lidem com um bem de caráter essencialmente público - a cultura -, não há incentivo governamental para que produzam e circulem sua arte. Pelo contrário: cada vez são impostas mais dificuldades.

Por isso, repudiamos a ação da Prefeitura, através da Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (SMIC), que, na última quinta-feira, 10 de novembro, promoveu um verdadeiro arrastão na Cidade Baixa, tendo fechado 22 estabelecimentos. Muitos destes abrem suas portas e oferecem palco para a promoção da Música Popular Brasileira feita por artistas que nem sempre encontram outro local para apresentar seu trabalho. São casas que geram empregos e garantem espaço para os artistas trabalharem e exporem.

Entender a cultura como bem público significa cobrar que a Prefeitura cumpra seu papel de incentivadora da mesma. Os locais que têm condições de garantir as reformas e as condições necessárias para funcionamento estão localizados em áreas nobres da cidade, e, em geral, não oferecem espaço para a música popular e muito menos oferecem acesso para a maioria população da cidade.

Todos(as) queremos segurança. Mas queremos que a Prefeitura cumpra seu papel, e não que opte pela saída "fácil" e meramente propagandística de fechar estabelecimentos como solução para o problema. Essa ação é mera "maquiagem", não resolve o problema e apenas penaliza trabalhadores e artistas.

Todos(as) queremos que a tranquilidade dos moradores e moradoras seja garantida. Mas para isso, é necessário também que a Prefeitura facilite a realização de reformas nos estabelecimentos de modo a preservar seu funcionamento.

Não podemos aceitar a criminalização e a marginalização da atividade produtiva de tais estabelecimentos, fundamentais para a promoção da cultura, do turismo, do entretenimento e do lazer em nossa cidade. Portanto, exigimos a imediata liberação para funcionamento das casas que têm condições de abrir, mas cujos processos estão parados na burocracia da SMIC.

Valorizar a cultura popular numa cidade vigorosa como Porto Alegre é um grande desafio. É preciso estar à altura dele.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Aborto nas eleições 2010: autonomia, saúde, crime e castigo

Abaixo, o resumo do artigo que submeti ao IV Seminário Nacional de Ciência Política da UFRGS, que acontece entre 8 e 10 de novembro.

Resumo:

A campanha eleitoral de 2010 no Brasil teve características peculiares. Pela primeira vez, uma mulher apresentou-se à disputa com condições reais de chegar à Presidência da República. Duas dos três principais candidatos eram mulheres. No que se refere ao conteúdo dos debates públicos, as eleições foram marcadas por temas de cunho moral e religioso, destacadamente, a questão do aborto.

Sem ser assumida na plataforma programática de nenhuma das três principais candidaturas, a virtual proposta de descriminalização do aborto foi alçada à condição de tema prioritário. Entretanto, o debate em torno dele não foi de natureza político-programática, mas sim, enviesado pela busca de apoio de lideranças religiosas, o que impôs uma tônica moralista normativa à abordagem do tema pelos candidatos. Ao mesmo tempo, os números da prática de aborto no país dão conta de que cerca de 15% das mulheres brasileiras que têm entre 18 e 39 anos afirmam já ter realizado pelo menos um aborto – dado encontrado pela Pesquisa Nacional de Aborto, publicada em 2010 pela Universidade de Brasília, em parceria com o Instituto Anis de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

O presente trabalho pretende analisar a forma como a questão emergiu no cenário eleitoral, como se desenrolou, e assim, investigar a tática a que tal abordagem serviu, bem como suas implicações à disputa de posições sobre legalização do aborto no Brasil. Para isso, foram analisados todos os textos do jornal Folha de S. Paulo que mencionaram a palavra “aborto” entre 18 de agosto e 29 de outubro de 2010, período que corresponde à propaganda político-eleitoral na TV. O objetivo era identificar as linhas de discurso das duas candidaturas que foram ao segundo turno – Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB) – para o tema, por meio de sua exposição na imprensa.

A inédita presença feminina na disputa presidencial e o destaque dado às questões morais, religiosas e da família são fatos associados. Essa associação encontra fundamentação nas teses feministas de divisão sexual do trabalho e da caracterização do espaço público como masculino e do espaço privado como feminino.


***
A íntegra do trabalho pode ser acessada aqui.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

I Conferência Livre de Jovens Mulheres

Hoje, aqui em Porto Alegre, começa a I Conferência Livre de Jovens Mulheres. Eu estou na mesa do primeiro painel, sábado de manhã, sobre "Mulher e Mídia". Abaixo, mais informações. Pra acessar o blog do evento, clique aqui.

Abaixo, a programação da conferência:


07 de Outubro de 2011

18h – Credenciamento
19h – Abertura - Composição da mesa com autoridades
19h40 – Grande Painel: “Memórias de um Passado Recente”. Panelistas: Maria Mulher; Movimento de Mulheres Camponesas; Mari Perusso - Confederação das Mulheres do Brasil e Mari Machado – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.
21h – Coquetel de Encerramento

08 de Outubro de 2011

8h30 – 1º Painel: Comunicação em Pauta: Mulher e Mídia. Palestrantes: Alessandra Terribili; Bia Barbosa; e Juliana Nunes.
10h30 – GT: Politica para Jovens Mulheres: Saúde Integral e Combate à Violência. Entidades Debatedoras: Nadine Anflor - Conselheira CDES e Delegada de Mulheres; Maíra Taborda - Secretaria de Politica para Mulheres/RS; LIGA Brasileira de Lésbicas; Clarivani - MNLM.
12h – Intervalo para almoço
13h30 – Apresentação Cultural: Dança Afro
13h45 – 2º Painel: Mulheres Jovens no Poder. Painelistas: Mariana Carlos – Vereadora de Cachoeira do Sul; Ariane Leitão – Mebro da Equipe da Casa Civil/RS; Gleidy Braga Ribeiro - Secretaria Nacional de Juventude;
15h30 – GT: Educação, Lazer e Cultura. Debatedoras: Tiely Queen – ONG Maças Podres; Alexandra Castilhos – UEE Livre; Maria Mulher.
17h30 – Encerramento.

E depois, todas (e todos) estão convidadíssimos para o Tributo a Clara Nunes, no Tapas Bar.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A publicidade e o machismo nosso de todo dia

"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia."
(Marina Colasanti)

A publicidade nunca se notabilizou por ter qualquer capacidade de contribuir para transformar relações de desigualdade e intolerância, corrigir distorções, superar contradições. Muito antes pelo contrário. Na maioria esmagadora das vezes, ela se vale justamente de estereótipos preconceituosos, do medo, de constrangimentos, para vender seus produtos com "eficiência".

Para as mulheres, a mensagem dirigida, muitas vezes, é: "para não ser feia, encalhada, indesejada, você deve usar este cosméstico". Ou ainda: "para dar conta de trabalhar, cuidar dos filhos, do marido, da casa, e ainda ser gostosa, você deve usar este produto de limpeza". Isso não é a exceção. Difícil é fugir desse padrão.

E mesmo estando habituadas a sermos tratadas dessa forma, ainda nos espanta quando esse reacionarismo todo atinge níveis elevados, como aconteceu com a tal peça da Hope na TV, com Gisele Bundchen estrelando. Uma das mulheres mais poderosas e midiáticas do país coloca-se em posição de plena submissão e ensina que não se devem dar "más notícias" vestida.

Ora, vejamos: as más notícias a que ela se refere são episódios como acidente de carro e limite de cartão de crédito estourado. Nada de novo. Nada mais batido, senso comum e estereotipado que acusar as mulheres de serem más motoristas e boas gastadoras. Nada mais senso comum, também, que afirmar que uma mulher só é respeitada por seu "sex appeal".

O problema é que a gente não precisa, não pode e não deve se acostumar a ser vista e exibida dessa forma. Sempre que possível, é preciso sim denunciar o machismo contido nesse tipo de abordagem, porque se a gente não fala nada, quem vai falar? E se ninguém falar, nunca essa baixaria toda vai parar. Vai se fortalecer e continuar alimentando o conjunto da desigualdade que encontramos na nossa sociedade, que se expressa, com mais visibilidade, em tantos casos de violência doméstica, sexual, discriminação no mercado de trabalho e etc. Tem uma bitola nos olhos quem não vê que tudo isso está tremendamente relacionado.

Hoje, boa parte dos que mais se autodeclaram temerários à censura estiveram do lado de lá quando ela foi aplicada em regime de exceção no Brasil. Quando havia censura à arte, à informação, à livre circulação de ideias, à liberdade de expressar opiniões.

É uma nítida demonstração de retórica da ameaça, na proposição de Albert Hirschman, sugerir que a Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Federal não possa cobrar um posicionamento do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), porque isso seria "censura". Nada pode ser mais infantil que corroborar com essa afirmação. A SPM está cumprindo seu papel, e deve fazê-lo. Por que a gente precisa aceitar?

Esse pessoal que adora temer a "censura" faz parte do seleto grupo de proprietários da mídia e seus financiadores, que censura impiedosamente qualquer tentativa de debate (eu disse: de debate) sobre a democratização da comunicação e sobre o combate dos excessos cometidos diariamente pelos veículos de mídia. Essa retórica toda é só pra, mais uma vez, tentar nos disciplinar. Mas uma ordem que me subjugue, não quero não, obrigada.

Portanto, um viva à liberdade de criticar o que nos oprime, à liberdade de expressar nosso desconforto, e de disputar para que seja diferente. Porque de mau uso e de subversão da liberdade de expressão, o mundo já está saturado.

* Alessandra Terribili, jornalista, mestranda em Ciência Política pela UFRGS.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Epifania

Andava por aí distraída, sem se importar demais com nada. Os dias não se dividiam um do outro. Foi um oi singelo que lhe tirou do cárcere de si mesma. E desde então o mundo se floriu.

Que bobagem, se era só um simples oi... Mas o oi foi o que lhe fez olhar que havia mundo ao seu redor. Que nem se fosse um estalar de dedos que desperta alguém de uma mágica que faz ficar paralisado.

O oi estalou pra ela. Mas o oi não é sujeito, sujeito é quem disse oi. "Oi!", meigo assim.

O oi lhe tirou da inércia, e ela ficou flor. Andava por aí iluminada agora. Às vezes, ruborizada. Tudo parecia mais alegre.

- Que criatura boba, iluminada por um oi.

Num dia pesado, saiu de casa pra ver o oi virar sorriso. Só pra isso saiu. Sabia onde colher. Andou determinada agora e foi até lá. Viu o sorriso. Iluminou-se mais. Voltou pra casa feliz.

- Que criatura boba, sorriso se vê em todo lugar.

Que nada. Tem um monte de sorriso que não sorri. Um sorriso que se vê nos olhos não é todo dia não. E o sorriso não é sujeito, sujeito é quem sorri. Isso faz toda a diferença.

Desejava verdadeiramente poder para sempre extrair sensações boas de paz daquele sorriso.

- Mas ois e sorrisos não se realizam em si mesmos!

- Ora, e por que precisa dar utilidades pragmáticas pra tudo?

Recolheu os ois e sorrisos e sensações boas de paz e foi dormir. Acordou de bom humor.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Rio Grande do Sul...

Alguns anos atrás, eu tinha escrito um poema que era mais ou menos assim:


Eu queria ser gaúcha
Porque de tanta coisa linda que vi no sul
As pessoas são a melhor delas
Porque sua capital é vermelha
Porque seu pôr-do-sol despretensioso e belo
Parece que se converte em notas musicais.

Mas não posso ficar longe do Rio

Ir até lá respirar de vez em quando
Só pra sentir a paz de estar abraçada pela Guanabara

Também não dá pra abrir mão do Recife

Vê-lo transbordar cultura, sabedoria
História e consciência de si
Respeitar seu próprio sotaque,
E permitir que você tire forças da Praia de Boa Viagem.

E nunca vou esquecer que foi a jovem capital federal

Que mudou a minha vida
Ao me ver em mim
E me mostrar pra mim mesma.

Recentemente passei a amar minha São Paulo.

Foi ela que me ensinou a ver esse mundareu de coisa boa.


Não lembro bem, eu meio que perdi o original. Ao tentar recompô-lo, creio que escrevi outro. Mas a ideia era essa.

Pensei nesse poema por causa do início dele, e porque hoje moro em Porto Alegre. Dia 20 de setembro é feriado no Rio Grande do Sul, data que recupera a Revolução Farroupilha. Eu não tenho lá muito apreço pelo bairrismo mítico, prefiro vê-lo na sua expressão simpática de "rir de si mesmo".

E adoro essa coisa polarizada do Rio Grande do Sul. Ou morre de calor ou passa muito frio. Ou é Inter ou é Grêmio. Esquerda ou direita. Gosto da forma como o povo de Porto Alegre habituou-se a ocupar o espaço público, entendendo como seu, mas não só seu. Sinto isso ao passear pela Redenção num domingo, pelo Gasômetro, pela zona sul. Gosto da forma como fui acolhida pelos que já me esperavam chegar, mas especialmente, pelos que nem sabiam que eu chegaria e me puseram pra dentro de suas vidas.

Ainda falta muito pra ver. Mas os pampas de Bagé, as ladeiras (lombas!) da Serra Gaúcha, o mar marrom do litoral, o charme tão peculiar das cidades na beira da Lagoa e a diversidade da vida na região metropolitana compõem um cenário tão plural que não pode ser simplificado nisso que se propagandeia como "a" tradição gaúcha. A que desfila no 20 de setembro é só uma das facetas. O Rio Grande do Sul é muito mais.

Eu não ligo quando chove, eu me aborreço muito quando faz 2ºC, eu torço pra chegar o verão, eu imagino muitas coisas que poderiam acontecer, e busco me inserir nas que acontecem. Vou à feirinha de orgânicos, adoro comer xis, acho o Beira-Rio o estádio mais bem-posicionado que eu conheço e acho que dividir um chimarrão na sala de aula é um gesto sutil de dizer ao outro que você é amigo dele. Atitudes simples que fazem brilhar um cotidiano. É isso, é tudo isso: o Rio Grande não te deixa ser indiferente. Ele é um convite a se posicionar.

Obrigada por me receberem.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

As mulheres como sujeito político

Abaixo, resumo do artigo que inscrevi no Seminário de Sociologia Política da UFPR, que vai acontecer em setembro. A íntegra pode ser acessada nos anais do evento.

***

As mulheres como sujeito político: A contribuição do feminismo, na redemocratização do Brasil, para uma nova noção de cidadania.

O período de redemocratização pós-regime militar no Brasil foi de rica efervescência social. As ações de oposição à ditadura tomaram diferentes formas, de meados da década de 1970 a meados dos anos 1980.

Desenhou-se ali a interlocução entre mulheres das periferias das grandes cidades, protagonistas do movimento contra o custo de vida; e mulheres da Universidade, das artes e das organizações de esquerda, que participaram da resistência à ditadura. O encontro entre essas personagens e sua desembocadura na organização do movimento de mulheres no Brasil tem repercussão até hoje sobre as políticas públicas e sobre a noção de cidadania.

No final da década de 1970, o Dia Internacional da Mulher voltou a ser celebrado no país, e passaram a ser realizados Encontros Nacionais Feministas, reunindo boa parte das mulheres que marcaram a oposição ao regime. Entre os muitos temas sobre os quais elas se debruçaram, concentraremos nossa análise em dois, bastante representativos: o combate à violência contra a mulher e a demanda por mais participação e representação política.

As duas questões partem do pressuposto de que não há iguais condições, na sociedade brasileira, entre homens e mulheres. Essa constatação levou as feministas a entenderem o Estado como espaço central de disputa, capaz de interferir nas relações sociais de sexo a fim de produzir a igualdade entre homens e mulheres registrada na Constituição de 1988.

Fundado em 1980, o Partido dos Trabalhadores, hoje comandando o país pelo 9º ano consecutivo, foi um dos palcos privilegiados para a atuação desse movimento naquele momento. Através de resoluções políticas e plataformas eleitorais do partido, é possível perceber a influência do feminismo e sua opção pela disputa do Estado como instrumento fundamental do combate à desigualdade.

Essa intervenção, gestada desde a queda do regime militar, concretizou-se, anos depois, em políticas públicas e legislação, aplicadas em âmbito federal.

Os últimos 30 anos, portanto, são expressivos de que a ação organizada das feministas contribuiu decisivamente para o reposicionamento do Estado brasileiro e para o redimensionamento do conceito de cidadania no Brasil.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O diário de uma geração



Uma das expressões mais claras de que os vinte anos de ditadura militar não são história bem resolvida para o Brasil é a quantidade de filmes que abordam ou se ambientam nesse período histórico. Entre ficção e não ficção, perpassando alguns diferentes gêneros, os anos de chumbo são frequentemente explorados pelo cinema brasileiro, que parece encontrar ali não somente um palco ou um cenário, mas sim, uma realidade a ser desbravada.

"Diário de uma busca" é uma dessas expressões. O documentário narra a busca da diretora, Flávia Castro, por respostas sobre a misteriosa morte de seu pai, Celso Castro, em 1984. Celso fora exilado político, e passou por seis países até poder voltar ao Brasil, em 1979, com a lei da anistia.

Acontece que, embora procure investigar um período histórico tão invocado, o filme apresenta-se absolutamente original na abordagem e no olhar sobre o momento. Com um belo jogo de metalinguagem, Flávia recupera a história de seus pais, então militantes de organizações de esquerda jogadas à clandestinidade pela ditadura. Eles foram obrigados a sair do país no início da década de 1970, levando os filhos pequenos (Flávia e seu irmão caçula) a lhes acompanharem na jornada. É desde o ponto de vista de uma menina, que começa a narrativa aos 6 anos, que o espectador conhece os fatos.

As duas crianças vivem em meio à fuga, à resistência, mas também, lado a lado com as esperanças e as dores de toda uma geração, muito materializada em seus pais e nas pessoas que com eles se relacionavam. Estranham o fato de não irem à escola, brincam de "fazer reunião" e observam tudo à sua volta. A opção por localizar aí seu relato livra o filme do risco de tornar-se "pesado", mas, ao contrário, envolve o espectador na busca de Flávia e na recomposição de uma infância atípica.

O espectador também tem o prazer de "conversar" com personagens centrais da história. Além de Sandra, a mãe de Flávia, e demais figuras da família; Daniel Aarão Reis, Marco Aurélio Garcia, Flávio Koutzii, Jean Marc Von der Weid (presidente da UNE em 1968) e o saudoso Daniel Bensaid são quem contextualiza o período histórico a partir de suas memórias políticas e da relação com Celso Castro e sua família.

Ao longo do filme, a compreensão da morte de Celso fica subordinada à grandiosidade da sua história, contada a partir de relatos, entrevistas, documentos, fotografias; e da dimensão humana de todo aquele processo, evidente, entre outros, nas dezenas de cartas dele, recuperadas por Flávia.

A vida de todo mundo, em qualquer período, é repleta de percalços, obstáculos, grandes imprevistos. Muitas coisas podem mudar para sempre a vida de uma pessoa. Mas, naqueles vinte anos, o Estado brasileiro colocou-se para seus cidadãos como um desses fatores, ou o principal, e isso é algo deveras sério. Sendo assim, independentemente de quem puxou o gatilho naquela tarde, e da razão que levou Celso ao apartamento onde ele se encontrou com a morte, a verdade é que sua vida mudara para sempre em 1964.

Enquanto os arquivos da ditadura permanecerem vergonhosamente sigilosos, enquanto brasileiros e brasileiras forem privados do direito à sua própria história, ainda haverá muito o que se falar sobre ditadura, ainda haverá muito o que se remexer nesse passado. Embora Flávia Castro declare-se, enfaticamente, alguém "não militante", a preciosidade da sua contribuição está justamente em escancarar as vidas que foram afetadas pela brutalidade do regime, e o quanto a desumanidade com que aquela geração foi tratada interferiu na sua forma de olhar o mundo dali por diante.

A história de cada um daqueles personagens teve diferentes desfechos, e opções variadas se apresentaram. Mas jamais será possível ignorar que, a despeito da especificidade do desenvolvimento de cada trajetória pessoal, nenhuma lei de anistia apaga as mortes, os desaparecimentos, tampouco a angústia e as dores que cada uma daquelas pessoas enfrentou. "Diário de uma busca" tem o mérito de ampliar os horizontes desse impacto. A sensibilidade é, afinal, um pressuposto de qualquer militância.


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Veja o trailer do filme:



DIÁRIO DE UMA BUSCA
direção: Flávia Castro
roteiro: Flávia Castro
gênero: documentário
origem: Brasil/França
duração: 108 minutos
tipo: longa-metragem

Em cartaz no CineBancários (Rua General Câmara, 424, centro de Porto Alegre) de 3 a 14 de agosto (exceto dia 8), em três horários: 15h, 17h, 19h.


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Em novembro de 2008, escrevi sobre um episódio que me comoveu muito: a Caravana da Anistia, passando por Caxias do Sul, anistiou o ex-deputado Flávio Koutzii (PT-RS), que é um dos personagens do filme. Pra quem quiser lembrar, clique aqui.

sábado, 30 de julho de 2011

O casamento

Porque "sempre" é um espaço limitado de tempo. E porque isso não é tão ruim.

Nem precisou de muitos olhares. O álcool acentua a sensibilidade, e, logo, sensíveis, encontraram-se. Dançaram impetuosamente e riam muito. Era instigante, porque era espontâneo, alegre e prazeroso.

E porque a boate não ficaria aberta para sempre, saíram rumo ao apartamento dele. Foi tanto amor ali que parecia que havia uma represa dele. Às sete da manhã, esticados na cama, ouviam-se. Mas logo, ouviram-se roncos.

Levantaram mais de duas da tarde, nenhum constrangimento. Esquisito: em geral, essa situação a deixava embaralhada, vontade de sair correndo ou de virar avestruz. Ele não, sempre foi sossegado. Mas os dois estavam mesmo muito confortáveis. Até que a fome aumentou. Era sábado.

- Quer comer uma massa deliciosa?, ele convidou.

Ela quis. Entraram no carro, era conversível, mas não desses chiques. Desses que já foram chiques um dia, mas esse dia, certamente, aconteceu décadas antes de ele adquiri-lo.

Muito vento na cara, e nem tava calor. Era outono em Porto Alegre.

O trajeto parecia longo demais. E seguia pela Free-Way. Não parou em Canoas, em São Leopoldo. Não parou. Ela nem ligou, riam horrores dentro do carro. Cantavam Chico.

- A gente podia se casar ao som de "O casamento dos pequenos burgueses", hein?, ele pensou alto.

- Mas sem aquela parte de um monte de filhos né?

- E por quê? Você não sonha ser mãe?

- Não. Acho que isso não é pra mim.

E foi essa a primeira briga do casal. Começou leve, mas ganhou contornos ríspidos. Ele teve de pedir desculpas pelo machismo. Ela teve que retirar os xingamentos.

Ficaram alguns minutos sem conversar, mas rápido outro assunto apareceu.

O carro parou, desceram em Canela, onde um restaurante italiano conhecido na serra gaúcha os esperava. Não esperava tanto assim, porque só abriria dali a uma hora, para o jantar. Quando abriu, a fome era tanta que não havia romantismo que segurasse os ímpetos esfomeados daqueles dois. E eles não estavam nem aí pra romantismo mesmo.

- Ei, repare só.

- O quê?

- Faz 24 horas que a gente se conhece...

E brindaram felizes ao aniversário de um dia. Com um espumante barato.

Não deu pra voltar pra casa, aquele carro sem capô acabaria lhes oferecendo uma bela pneumonia. Dormiram na serra. Abraçados, porque romantismo é dormir abraçado e sair de casa sem saber quando volta.

Ela chegou de volta à sua casa exatas 48 horas após sair para uma festa com as amigas. Cansada, nem quis avisar que estava bem. Estava ótima.

Dia seguinte os dois foram trabalhar, cada um no seu trabalho. Quem não é bom observador, nem percebeu que havia uma coisa esquisita no olhar de cada um. Os dias se passaram, a semana acabou. Foi o casamento mais rápido e intenso que o mundo já viu. Seus filhos foram dias de sorriso e vontade de viver.

Nunca mais se encontraram. Mas nunca mais desgrudaram um do outro e viveram felizes para sempre.
 
 
***
Pessoal, vou cumprir o resultado da minha enquete boca-a-boca, via twitter e via Face, tomar vergonha na cara, e escrever pelo menos uma vez por semana... Não garanto se continho, se crônica, se artigo, se futebol, se feminismo, se política, se vida... Obrigada por me incentivarem.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Qual a graça?

Umas das principais polêmicas da semana é a entrevista da revista "Rolling Stone Brasil" com o cqc Rafael Bastos. A matéria revela um trecho do show do comediante, em que ele diz, referindo-se ao estupro de uma "mulher feia": "Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade."

Ora, na mesma semana em que jovens de três estados foram detidos por atuarem num movimento que defende a legalização da maconha, acusados de "apologia às drogas", as declarações de Bastos suscitam alguns questionamentos. Por um lado, os jovens mencionados estavam exercendo seu direito à livre manifestação de ideias, defendendo seu ponto de vista, disputando sua opinião na sociedade legitimamente.

De outro lado, Rafael Bastos, cujo discurso não tem nenhuma dessas características, não poderia ser acusado de apologia a um crime hediondo? Por que? Porque aquilo pretende ser uma piada? Porque ele só quer "desconstruir o politicamente correto"? Porque é famoso e ganhou carta branca pra dizer as barbaridades que quiser impunemente?

Há meios inteligentes, ou pelo menos, não tão vulgares, de pôr o "politicamente correto" em questão. Sugerir o estupro de mulheres e promover sua banalização não choca o moralismo, choca quem, há décadas, concentra esforços para denunciar e combater essa violência injustificável - que não é ficção, é de verdade, mais comum e mais impune do que se imagina.

Tratar estupro como piada passa por cima de tantas mulheres que o machismo já vitimizou por meio dessa arma cruel, legitima essa violência, conferindo-lhe o status de coisa qualquer, coisa da vida, coisa que acontece e pode ser tolerada. Esse é o texto implícito. Não precisa se dedicar muito pra entender.

Acontece que estupro não é piada, não é engraçado, não é tolerável e não há atenuantes. Banalizar esse assunto é tornar-se cúmplice dele. Não há meio termo. Aceitar rir de si mesmo é uma coisa. Rir de uma mulher estuprada é outra completamente diferente.

A quem quer caçoar do "politicamente correto", que o faça sem brincar com o que não tem graça nenhuma. Indicar o estupro como "oportunidade" num texto humorístico não é bonitinho, nem engraçadinho, nem original, muito menos inteligente. É cruel, leviano, beira o fascismo. Atitudes como essa, travestida de moderninha e descolada, é o que de mais reacionário pode haver numa sociedade desigual como a nossa. Afinal, por que Bolsonaro é criticado quando fala sério, mas Rafael Bastos tem autorização pra falar "brincando"?

Violência contra a mulher é crime. Não tem graça. Não tem desculpa.

domingo, 8 de maio de 2011

2001: O ano que não acabou

UMA INTRODUÇÃO
Por Alessandra Terribili *



Acho que foi em 2001 que aprendemos a sentir saudades desse jeito. Nossa saudade tinha cheiro de eternidade, nossas separações eram breves, os reencontros eram certos, e as saudades nos faziam imaginar que os hiatos de tempo em que não nos víamos não eram nada diante da intensidade que aquele momento nos reservava.

Aprendemos muita coisa, cada um a seu modo. Aprendemos a negociar, aprendemos a ser solidários, aprendemos a voar sem cair. Todo mundo trazia uma bagagem repleta de expectativas, inseguranças, seguranças, juventude e fé. Trocamos bagagens uns com os outros. Demos boas risadas, choramos várias vezes, sentimos medo, sentimos coragem, sentimos orgulho do que estávamos fazendo, sem saber que, 10 anos depois, nos orgulharíamos ainda mais. Tinha gente de DCE, tinha gente de executiva, tinha dirigente nacional, tinha gente que queria ser dirigente, tinha gente que fugia de ser dirigente. Tinha gente que bebia e gente que não bebia. Mas tinha gente, tinha muita gente.

Essa geração prestou uma contribuição inestimável para o movimento estudantil e para o Brasil. Nosso enfrentamento ao neoliberalismo, que encontrou em 2001 seu auge e melhor expressão, somou-se a esforços vindos de outras áreas, outros lugares, outros movimentos. A defesa da educação pública era a nossa maneira de contribuir com aquele momento especial, e talvez, boa parte de nós nem soubesse o quão especial era aquilo tudo.

A convivência diária, o “perrengue” coletivo, o acampamento que nos expunha à proximidade, à possibilidade de nos encantarmos uns com outros, a vivência política comum de um momento tão histórico quanto pessoal para cada um de nós fizeram com que elaborássemos, mesmo sem saber, como quem tece uma longa colcha, padrões de militância diferentes do que aqueles que conhecíamos antes. Respeitar-se não é extraordinário, é o que deveria ser cotidiano. E ali, em meio a tantas novas situações, àquele grupo que se modificava tanto quanto se ampliava, certamente havia uma semente sendo plantada para que florescesse uma cultura política que não cresceria vistosa em qualquer chão, com qualquer tratamento, e nem de uma hora pra outra. Sem donos ou autores, mas produto natural de um período que marcou pessoas e a história recente de um movimento social tão presente. Produto natural porque tecido cuidadosamente com os panos mais floridos e resistentes com que se pode trabalhar. A colcha foi sendo tecida devagar, quase sem querer. E ainda hoje aquece muita gente, muitas mais do que qualquer um de nós ousaria sonhar naquele momento.

Tecendo uma nova manhã

Em setembro, quando uma reunião ampliada da UNE deflagrou greve estudantil nacional, começava uma luta que prometia ser incessante e vitoriosa. O Comando Nacional de Greve e Mobilização se instalou, convocou DCEs e executivas e federações de curso, articulou ações unificadas, mostrou a cara em cada canto do Brasil. A grande marca daquele movimento foi a tentativa de ocupação do Ministério da Fazenda, quando, definitivamente, todo o Brasil olhou para nós. E tudo foi planejado coletivamente, atropelando apenas as dificuldades decorrentes das diferenças que sempre houve entre nós. E, registre-se, foi uma das raras vezes em que o movimento estudantil acordou (literalmente) na hora combinada.



Havia o Plebiscito do Provão, um instrumento de uma luta bastante representativa do nosso embate com aquele Ministério da Educação. Percorremos o país, tornamo-nos mais e mais numerosos, cativamos centros e diretórios acadêmicos, colocamos nas urnas a opinião contrária dos estudantes àquele mecanismo de pseudoavaliação. Registramos esse repúdio nos boicotes à prova. Era um golpe certeiro contra o “provão” e contra a política educacional de Paulo Renato e FHC.

E por confiarmos que a democracia com que nos organizávamos era o motor da nossa força, queríamos que a UNE fizesse um Coneb (Conselho Nacional de Entidades de Base). Reunimos o apoio de quase 500 centros e diretórios acadêmicos de todo o país, dezenas de DCEs e praticamente todas as executivas e federações de curso que existiam. Não havendo logrado nesse objetivo, realizamos um encontro nacional de CAs e DAs (o ENEB), e, poucos anos depois, a UNE retomava a realização dos Conebs como agenda fundamental do movimento estudantil.

Tendo percebido que a luta precisa de parceiros, participamos e extraímos o que de melhor havia no ENU (Encontro Nacional de Estudantes, promovido pelo MST). Tendo entendido tanta coisa na luta concreta, acreditamos que uma campanha contra a mercantilização da educação era necessária para demarcar nossa opinião, denunciar a forma como o Governo FHC nos via e às universidades e escolas deste país, e dar consequência à mobilização e às vitórias conquistadas na greve. Tendo entendido que o mundo é maior ainda do que parecia, fizemos do Fórum Social Mundial mais um palco para nossa intervenção.

O primeiro ano do resto de nossas vidas

Foi tanta coisa que parece que o ano de 2001 nunca acabou. Acho mesmo que ele poder estar aberto até agora, pra gente construir um final feliz pra história que começamos a escrever ali, a tantas mãos. Reencontrar os personagens daquelas lutas, reencontrar nosso palco principal – Brasília e a UnB –, é compor mais um capítulo de uma história feita de política, negociação, combate, luta, discordância e concordância; mas também de abraços, sorrisos, afeto, companheirismo e solidariedade.

Talvez 2001 tenha sido como uma página de introdução em nossas vidas. Ainda que houvesse, ali, quem estivesse começando, e também que já estivesse até calejado da luta, certamente, de lá, ninguém saiu como entrou. Temendo parecer exagerada, talvez nem a Universidade, nem o Brasil. O que começou ali ainda está sendo escrito, e aqueles mesmos personagens, mesmo se em outros papeis, ainda são protagonistas. A história seguiu.



Acontece que a vida nos separou mesmo. Alguns trocaram de partido, muitos permaneceram onde estavam, outros largaram a militância. Houve quem mudou de cidade, quem foi pra fora do país, quem mudou o lugar de atuação. A distância geográfica e, às vezes, a distância partidária ou na leitura que cada um faz do atual momento histórico, fazem com que aquele hiato de tempo, que era sempre breve, pareça mais ampliado agora. Mas segue sendo apenas um hiato. Até porque uma das coisas bonitas que aprendemos naquele ano que não acabou é que, como Jorge Amado escreveu, a revolução é uma pátria e uma família.

* Jornalista, participou do CNGM-UNE, foi coordenadora nacional do Plebiscito do Provão, e teve o prazer e a honra de fazer parte dessa história maravilhosa que ainda estamos contando.

sexta-feira, 18 de março de 2011

O caminho de Alice

"O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para sair daqui?"

"Isso depende muito de para onde você quer ir", respondeu o Gato.


Alice chegou a um país esquisito e logo quis saber: "Senhor, é aqui o País das Maravilhas?". "É não", Rafael respondeu. Rafael era anjo e tinha logo nome de anjo que era pra ninguém achar de duvidar. Notou o estranhamento de Alice e completou: "Tem maravilha em lugar nenhum não, moça".

Levou muitos conselhos de Rafael na mochila discreta, e seguiu andando pra enfrentar o tal país, rumo ao das Maravilhas. Sabia que existia, já tinha lido e imaginado, em algum lugar estava. Seguiu a travessia e viu Clarissa, que era agitada e sorridente como uma rainha mesmo, mas era forte e de pouca vaidade, como pouca rainha e rei consegue combinar. Alice pensou que rainha que é rainha não precisa ficar provando poder toda hora, porque não tem dúvida do que pode. Clarissa disse a Alice que maravilha é onde se está, e depende menos do que está à volta do que dos olhos que veem à volta. Continuou sorrindo.

"Mas ninguém aqui conhece o país que busco? Ou estão ignorando porque talvez seja perigoso ir até lá?". Joaquim ouviu essa indagação em voz alta, e disse pra Alice que País de Maravilhas não conhecia não, mas o caminho que talvez apontasse pra lá era perigoso, com curvas, cruzamentos, pedras. Ele falou com serenidade tal que Alice não teve medo de seguir o caminho, só ficou desconfiada de si mesma, de não desistir na metade. E Carlos contou que era árduo sim o caminho, mas que era muito melhor saber logo a verdade do que ser enganado e descobrir só depois. Porque você só enfrenta uma realidade ruim se conhecê-la sem medo.

Tentando manter-se sem medo e com os olhos abertos para a verdade, viu Débora colhendo flores. "A verdade vale a pena, Alice". Débora sabia bem porque ela mesma parecia com a verdade, de tão bonita e intempestuosa.

Era bom que esse País das Maravilhas valesse a pena, porque tanta confusão no coração, um pouco de medo e insegurança e desconfiança de si mesma faziam-se curvas, cruzamentos e pedras no caminho de Alice. E seguiu mais e mais e chegou a Eduardo, e o reconheceu e se reconheceu. Ele falava que pra evitar errar, às vezes, a gente tem que se deixar transbordar. A gente erra muito, mas não tem problema, porque vida é uma só, mas verdades são muitas.

A gente acerta e erra, mas Alice precisava acertar o caminho, praquela viagem não ser em vão e ela vencer a vontade de desistir que o cansaço e a falta de esperança trazem quando aparecem obstáculos ou um não-saber-aonde-ir. Pensava nisso quando ouviu, de longe, duas fadinhas brigando, e brigavam porque não entendiam que erro e acerto nem sempre são absolutos, e queriam acertar sempre, desprezando que só quem acerta sempre é o deus de cada um, que a gente sempre imagina que é perfeito, mas nunca se provou pra gente que haja alguém perfeito. E elas não se perdoavam pela falta de perfeição...

Alice beijou as duas fadinhas e seguiu sua jornada. Passou por dois guerreiros, eram Gabriel e Elisabete. Naquele país esquisito, guerreiros não usavam lanças, nem armas de fogo. Não se protegiam muito também porque todo o seu povo os protegia. Às vezes choravam, mas depois abriam largos sorrisos de esperança e força. Sempre venciam. Alice lhes pediu uma indicação de caminho e revelou seu medo de errar - "Não posso errar justo agora, não tenho tempo". Eles disseram que todo caminho tem mão-dupla e que tempo nunca temos, então, o jeito é desprezá-lo pra que ele não aja contra nós.

Continuou andando Alice, mais corajosa agora, porque não ia viver pra sempre, mas não precisava atropelar todo o agora por causa do depois. E só porque ficou corajosa, pôde conhecer Ângela, que não era anjo porque não queria, e acabou sendo uma criatura inexplicável e indefinível. Ela ria aqueles risos escapados, e gostava de não se preocupar com o que poderia ter sido, pra não perder o tempo atual de amar as pessoas. Ângela era exatamente como o amor devia ser: leve, alegre, intenso.

Alice já não sabia mais o que esperar do País das Maravilhas que estava buscando. Aquele caminho longo a fez ver outras coisas que relativizaram em sua cabeça o que, afinal, haveria de maravilhoso num País de Maravilhas. Como aquelas peças que os momentos pregam às vezes, deparou com uma placa que dizia: é por aqui. O medo de errar o caminho se foi, porque sim, ela estava no rumo certo. Apertou o passo feliz, mas com um pouco de nostalgia. Leu a placa porque naquele país esquisito aprendeu a ler. Parecia duro, mas era mole que nem massa de modelar.

"A gente modela, Alice, o país aqui e os países lá fora não estão terminados. São modeláveis", era voz de Arlete, que tinha um olhar distante mas pés bem presos no chão. Não caía e andava leve. Alice partiu sabendo que o País das Maravilhas também haveria de ser modelável, mas sua vontade de encontrá-lo nunca seria modelável.

Encheu-se de si mesma e, com olhar de festa, viu Jonatas e Bruno acenando, e de ver acenos felizes pensou que até logo não é adeus, e que poderia levar consigo alguns dos doces que eles lhe jogavam enquanto ela saía. Alice acabou chorando, mas tinha doces, conselhos, varinhas de condão e óculos bem limpinhos em sua mochila, porque os levava do país esquisito. Acenou de volta e foi correndo, porque agora sabia bem aonde ia chegar. E todo aquele pessoal, entre anjos, rainhas, fadas, guerreiros, estrelas, afagos, doces, todos sentiram saudades de Alice, mas torceram muito pra que ela chegasse ao seu País das Maravilhas. Não porque ele de fato existisse. Mas porque eles sabiam bem que foram eles que a ajudaram a encontrar o que ela sempre esteve buscando.

Uma homenagem a uma terra esquisita, cheia de pessoas maravilhosas, de onde eu, certamente, sentirei muita falta.

sexta-feira, 11 de março de 2011

A culpa é das mulheres

Que o Jornal da Globo não deve ser referência para a construção de opinião de ninguém, isso já sabemos. Willian Waack e sua disposição extraordinária para o imperialismo e a direita, com frases de efeito e caras amarradas, são o testemunho principal de que se trata do telejornal mais posicionado politicamente na Rede Globo. Está à direita e não abre mão. Nem a cobertura do futebol escapa.

Ontem, mais uma demonstração disso. Para este artigo, vou me basear no texto disponível no sítio eletrônico do famigerado jornal, porque, obviamente, não decorei a matéria que vi na TV esta madrugada. 

A chamada anunciava uma tal pesquisa que dizia que as mulheres não pedem aumento, ou pedem aumento menos que os homens. A relação imediata e automática feita pelo jornal foi exatamente essa: as mulheres ganham menos porque não pedem aumento!

Não sei quem fez a pesquisa, o texto no site não diz. Ela afirma que 44% das mulheres entrevistadas já pediram aumento, contra 48% dos homens. Oh, enorme diferença! Eis aí o motivo da histórica desigualdade salarial. Um número mais expressivo revelava que 28% das mulheres pensam em pedir promoção, contra 39% dos homens.

Simplismo e machismo

Independentemente de se ter ou não acesso a dados e a uma reflexão um pouco mais profunda que um pires, parece-me, no mínimo, estúpido atribuir a desigualdade salarial a quem tem mais ou menos coragem de pedir aumento. E pra fechar com chave de ouro, a reportagem apresentava uma gerente de marketing que confirmava o raciocínio a partir do qual a matéria foi organizada: “Eu acho que quem coloca limitação é a própria pessoa. O mercado, hoje, está aberto”, ela dizia, categórica.

A grande mídia adora usar as exceções que confirmam a regra para culpar o excluído ou excluída pela sua própria exclusão. Mas a reportagem e a edição deveriam ter pesquisado um pouquinho mais. Considerar quando e de que forma as mulheres acessaram o mercado de trabalho. Em quais condições. Em que espaços. Em que contexto econômico. Vamos lá, não é tão sofisticado assim. Seria o bom jornalismo.

Na década de 90, por exemplo, auge da globalização neoliberal, enquanto nos países do centro do capitalismo o emprego feminino se expandiu em atividades de jornada parcial, como medida de flexibilização; nos países da periferia, o emprego feminino cresceu como precário e vulnerável, o que acompanhou e acentuou a tendência de informalização e perda de direitos. Esses postos estavam, principalmente, no setor de comércio e serviços, mais instáveis e mal remunerados (vide “Por quem os sinos dobram?”, artigo de Helena Hirata disponível no sítio da SOF).

Segundo dados divulgados pela Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Federal em seu relatório anual 2009/2010, o rendimento médio de homens empregados com carteira de trabalho assinada é de R$1.117,77; enquanto o das mulheres, na mesma posição, é de R$884,82. Entre trabalhadores domésticos sem carteira assinada, no caso dos homens, o rendimento médio é de R$408,96; e o das mulheres, R$301,12. Sabe-se muito bem que, nesta última situação, falamos de um mercado muito majoritariamente feminino.

E é por que elas não pedem aumento que essa situação se mantém?

Vejamos outros dados a serem cruzados com esses primeiros. De acordo com o mesmo relatório, 46% dos homens realizam afazeres domésticos. Entre as mulheres, esse número é de 88%. As mulheres gastam cerca de 25 horas semanais nesses afazeres, enquanto os homens gastam 10.

A taxa de atividade para os homens (proporção da população economicamente ativa em relação à população em idade ativa; considerando-se pessoas com 16 anos de idade ou mais) é de quase 82%. Para as mulheres, 58,5%. E quase 65% das mulheres empregadas estão na informalidade. Todos os dados são da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios).

Lé com cré

Será que esses dados simplesmente não se relacionam? E que finalmente o Jornal da Globo nos deu a razão de toda desigualdade e exploração: a timidez das mulheres para pedir aumento???

É de amplo conhecimento que os salários das mulheres são, em média, 75% do dos homens, ocupando mesma função. Não precisam se esforçar muito pra perceber que elas são a camada mais desprotegida da classe trabalhadora, porque ocupam os postos menos valorizados, em espaços de maior instabilidade, e porque estão majoritariamente em empregos informais, sem qualquer garantia de direito. Quando a mulher é negra, a situação fica ainda mais complicada. A exploração da mão-de-obra feminina precisa ser observada desde um prisma mais completo do que a reportagem simplista e machista propõe.

Este humilde artigo não pretende mostrar historicamente como o mercado de trabalho brasileiro se compôs. Recuperar a entrada das mulheres no mercado de trabalho ajuda a entender por que o salário é desigual. Olhar ao mundo ao redor e ver que o machismo ainda é dos seus pilares estruturantes também ajuda. A inserção subordinada no mercado de trabalho não será resolvida por ação individual de mulher nenhuma, nem por benevolência dos patrões. O combate à desigualdade tem que se dar por política pública e por ação organizada das mulheres, que afinal, sempre foi o que levou às conquistas e à transformação do mundo.

sexta-feira, 4 de março de 2011

A evolução da liberdade?

O Carnaval é das festas mais tradicionais e aguardadas no Brasil. Em cada estado, as pessoas festejam a seu modo, e a alegria unifica tudo numa coisa só. Essa é a imagem bela que temos do Carnaval: bailes, blocos de rua, festas populares, muita gente feliz que, por 4 dias, consegue esquecer seus problemas e se irmana com desconhecidos e desconhecidas que estão sob a mesma condição.

O problema é que, como tudo, o Carnaval não é só beleza não. Todo ano, relatos de excessos cometidos por foliões Brasil afora deixam de orelha em pé qualquer pessoa que tenha algum apreço pelos direitos humanos. Entre tanta prática de barbárie, uma apresenta-se bastante comum: o desprezo pelas mulheres, seus direitos e sua autonomia.

Quem nunca ficou sabendo de uma história carnavalesca que envolveu violência sexual? Pra nem ir tão longe: quantas vezes você soube que, no meio da festa, passaram a mão em fulana ou beltrana? Quantas vezes você viu mulheres serem agarradas à força nessas situações? Pior: quantas vezes você ouviu, diante disso tudo, que “não se leve a mal, hoje é Carnaval”?

A celebração vira justificativa para uma porção de absurdos que, algumas vezes, nem são tolerados fora do contexto de Carnaval, mas sob ele são aceitos como se fossem práticas sociais recorrentes e até premiadas.

Há mulheres que deixam de freqüentar alguns espaços por causa do assédio fora de qualquer limite. Ficam constrangidas diante da imposição de um beijo, de um abraço, de uma mão em seu peito ou em sua bunda. Essas mulheres são mais numerosas do que se imagina.

Isso sem contar que o turismo sexual corre solto nessa época, ainda mais que em outras. Afinal, a propaganda que se faz do Brasil lá fora parece dizer que é a terra das mulheres gostosas e do sexo fácil e descompromissado. Milhares de mulheres sambando peladas, closes ginecológicos nas coberturas de TVs, fotos pornográficas em qualquer site de internet. Isso pra nem falar de como são retratadas as mulatas, pois o Carnaval é mais um momento em que o preconceito e a opressão das mulheres negras se reafirmam com muito mais força.

“Não seja exagerada ou moralista” é algo que certamente ouvirei (ou lerei) por conta desta opinião. Evidente que o Carnaval não é só a parte da falta de limites e da agressão de mulheres, seja pela mercantilização do seu corpo, pela vulgarização da sua imagem ou pela coerção física mesmo. Mas é conveniente tratar deste assunto agora, este ano, mais do que nunca, porque 8 de março de 2011 – Dia Internacional da Mulher – será terça-feira de Carnaval.

“Ô sua mal amada, que tem inveja das mulheres que podem ficar nuas na frente de todo mundo porque são belas”; ou “Deixa de ser histérica, que a maioria das mulheres nem se sente ofendida por nada disso que você está falando”. Mas é que este blog tem um público de esquerda, consciente da vida real, das desigualdades, da opressão, que sabe que as coisas não acontecem por acaso.

A luta das mulheres no Brasil e no mundo é histórica, conquistou muita coisa, transformou o mundo todo. Mas ainda falta muito. Nem precisamos nos alongar pra justificar essa afirmação, basta olhar os conhecidos dados acerca da violência contra mulheres, desigualdade salarial, atribuições domésticas, etc.

Bandeiras caras ao feminismo, como aquela contra a exploração do corpo das mulheres, contra a mercantilização, em defesa do livre exercício da sexualidade e contra todo tipo de violência são altamente contrariadas durante o Carnaval, em salões, blocos e TVs do país inteiro. Não pode ser um momento de exceção: a humilhação, coação e opressão das mulheres devem ser combatidas todos os dias do ano.

E pra quem fica indignada ou indignado diante da completa banalização que se faz do corpo feminino nessa época, que é exposto como se fosse uma lata de sardinha no supermercado, ou um frango assado girando em volta de si mesmo numa padaria, não se sinta ultrapassado ou moralista. Anacrônica é essa forma de ver as mulheres. E uma indignação coletiva e em voz alta pode ajudar a alterar as coisas como estão – porque, como disse Paulo Freire, o mundo não é, o mundo está sendo.

Neste 8 de março, além de guerrear contra a indústria de cosméticos e seus afins, que não se conforma enquanto não tornar nosso dia de luta em mais um dia de comércio, temos esse forte adversário pela frente: a naturalização da opressão e a ideia de “período de exceção”. Mas nós, feministas, que tantas batalhas já vencemos, não tememos essa não. E viva o dia internacional da mulher!

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

São Luís e o que a gente devia saber e não sabe


São Luís é o que de mais espetacular você pode ver. Eu não tenho dúvida.

Visitei São Luís, tão despretensiosa quanto a cidade, em janeiro de 2011.

Adoro praia, mas não me sinto bem em cidades curvadas diante do turismo selvagem que assola a costa do Brasil. Não estou cá, eu, culpando as cidades. Mas a tal divisão social do trabalho tem efeitos perversos sob qualquer prisma que se queira olhar.

São Luís é uma parada pra quem quer conhecer os inacreditáveis Lençóis Maranhenses. Mas quem faz dela apenas isso perde muita coisa. Perde tudo.

Sem esoterismo, São Luís é uma cidade mágica. Ela suga você. O centro histórico dela é das coisas mais bonitas de que já tive notícia. Você é transportado no tempo. Parece que você vê a vida que houve, ao mesmo tempo que você vê a vida que há. Os mais ousados e ousadas podem ver o que haverá, perpassando aquelas ruas de paralelepípedos, aquelas ladeiras intermináveis, janelinhas e palácios coloniais.

Os casarões são bem mal-cuidados pelos governos. Senti que, quando vem a noite, aquele lugar dorme como se fosse qualquer esquina. Pecado mortal. São os mesmos governos que também tratam mal seu povo e suas riquezas naturais. Há décadas, inclusive.

São Luís parece flertar com você toda hora. Não pede nada, porque sabe seu valor. Mas chama: aqui é Meio-Norte. E você não entende. Nem quando aquela chuva insistente cai, intermitente, arrogante. "Olhe pra cá", ela diz. E se você olhar, vê muita coisa.

De um povo simpático, orgulhoso e receoso com tua presença, ao mesmo tempo. O lugar de São Luís não é capa de revista de turismo não. O lugar de São Luís é junto daqueles que você não entende bem, mas porque o problema é seu, não do lugar. Não exibe praias exuberantes nem lugares como os que se vê na televisão, exclusivos para turista. A vocação dela é outra.

Eu vi a Casa de Cultura do Maranhão, e mulheres explicando, orgulhosas, uma parte de sua cultura. Eu vi um samba em homenagem a Noel, maravilhoso, mostrando que o Maranhão é Brasil, meio-norte coisa nenhuma. Eu vi reggaes, praias e sons que queriam sua identidade. Eu vi pessoas imponentes falando de sua idade, seu estado, com saudades do que nunca foi, mas sabendo que muito há o que fazer. Garçons, taxistas, recepcionistas, gente que trabalha e observa. O Maranhão não merece as famílias que o aprisionaram.


São Luís, tão modesta e tão despretensiosa, me fez olhar pro que eu precisava ver: o mundo é onde você está. Tive vontade de nunca mais sair. De ficar e virar maranhense. Senti lá, contraditório com um estado que não tomou rédeas de sua história - por enquanto, e não por inoperância de seu povo guerreiro e alegre -, é que você sempre vai poder mudar seu caminho.

São Luís parece que aguarda, simpática e determinada, o momento da virada. Ela sabe bem quem é. Não seria benevolência do destino, nem coincidências históricas. Cada azulejo do "Renascer", cada conversa de taxista, cada reggae, samba, cada conversa de bar, cada carro que adentra as areias de Araçagi, cada artista que aquela terra produz vem dessa inspiração. Se ainda não aconteceu, é porque ali imperam grandes poderes que usam armas desleais. Mas calma. Ali não é deles. E não é seu também, não chegue achando que pode mais.

Não se apavorem se, dia ou outro, o Maranhão virar o centro do que sabemos. Ele cultiva isso há séculos. Nem todo dia se vê a história se cruzando com a esperança. Portanto, se for a São Luís, vá às praias sim, divirta-se com suas peculiaridades, conheça o lindo centro histórico, dance um reggae, veja a lagoa e conheça a gastronomia local. Mas não perca a oportunidade de olhar pra São Luís como uma cidade que te encanta por se saber. Ela se finge de modesta. Mas é só pra testar se você merece estar ali.

PS: Obrigada à querida Ariely Castro pelas fotos.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Poeminha

Abrindo os trabalho em 2011 com um humilde poeminha.
Feliz ano novo pra todos/as!
***


Eu quero ela me dizendo que sou tudo pra ela.
Eu quero ela me dizendo que sou tudo.
Eu quero ela me dizendo que sou.
Eu quero ela me dizendo.
Eu quero ela.
Eu quero.
Eu.