sexta-feira, 18 de março de 2011

O caminho de Alice

"O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para sair daqui?"

"Isso depende muito de para onde você quer ir", respondeu o Gato.


Alice chegou a um país esquisito e logo quis saber: "Senhor, é aqui o País das Maravilhas?". "É não", Rafael respondeu. Rafael era anjo e tinha logo nome de anjo que era pra ninguém achar de duvidar. Notou o estranhamento de Alice e completou: "Tem maravilha em lugar nenhum não, moça".

Levou muitos conselhos de Rafael na mochila discreta, e seguiu andando pra enfrentar o tal país, rumo ao das Maravilhas. Sabia que existia, já tinha lido e imaginado, em algum lugar estava. Seguiu a travessia e viu Clarissa, que era agitada e sorridente como uma rainha mesmo, mas era forte e de pouca vaidade, como pouca rainha e rei consegue combinar. Alice pensou que rainha que é rainha não precisa ficar provando poder toda hora, porque não tem dúvida do que pode. Clarissa disse a Alice que maravilha é onde se está, e depende menos do que está à volta do que dos olhos que veem à volta. Continuou sorrindo.

"Mas ninguém aqui conhece o país que busco? Ou estão ignorando porque talvez seja perigoso ir até lá?". Joaquim ouviu essa indagação em voz alta, e disse pra Alice que País de Maravilhas não conhecia não, mas o caminho que talvez apontasse pra lá era perigoso, com curvas, cruzamentos, pedras. Ele falou com serenidade tal que Alice não teve medo de seguir o caminho, só ficou desconfiada de si mesma, de não desistir na metade. E Carlos contou que era árduo sim o caminho, mas que era muito melhor saber logo a verdade do que ser enganado e descobrir só depois. Porque você só enfrenta uma realidade ruim se conhecê-la sem medo.

Tentando manter-se sem medo e com os olhos abertos para a verdade, viu Débora colhendo flores. "A verdade vale a pena, Alice". Débora sabia bem porque ela mesma parecia com a verdade, de tão bonita e intempestuosa.

Era bom que esse País das Maravilhas valesse a pena, porque tanta confusão no coração, um pouco de medo e insegurança e desconfiança de si mesma faziam-se curvas, cruzamentos e pedras no caminho de Alice. E seguiu mais e mais e chegou a Eduardo, e o reconheceu e se reconheceu. Ele falava que pra evitar errar, às vezes, a gente tem que se deixar transbordar. A gente erra muito, mas não tem problema, porque vida é uma só, mas verdades são muitas.

A gente acerta e erra, mas Alice precisava acertar o caminho, praquela viagem não ser em vão e ela vencer a vontade de desistir que o cansaço e a falta de esperança trazem quando aparecem obstáculos ou um não-saber-aonde-ir. Pensava nisso quando ouviu, de longe, duas fadinhas brigando, e brigavam porque não entendiam que erro e acerto nem sempre são absolutos, e queriam acertar sempre, desprezando que só quem acerta sempre é o deus de cada um, que a gente sempre imagina que é perfeito, mas nunca se provou pra gente que haja alguém perfeito. E elas não se perdoavam pela falta de perfeição...

Alice beijou as duas fadinhas e seguiu sua jornada. Passou por dois guerreiros, eram Gabriel e Elisabete. Naquele país esquisito, guerreiros não usavam lanças, nem armas de fogo. Não se protegiam muito também porque todo o seu povo os protegia. Às vezes choravam, mas depois abriam largos sorrisos de esperança e força. Sempre venciam. Alice lhes pediu uma indicação de caminho e revelou seu medo de errar - "Não posso errar justo agora, não tenho tempo". Eles disseram que todo caminho tem mão-dupla e que tempo nunca temos, então, o jeito é desprezá-lo pra que ele não aja contra nós.

Continuou andando Alice, mais corajosa agora, porque não ia viver pra sempre, mas não precisava atropelar todo o agora por causa do depois. E só porque ficou corajosa, pôde conhecer Ângela, que não era anjo porque não queria, e acabou sendo uma criatura inexplicável e indefinível. Ela ria aqueles risos escapados, e gostava de não se preocupar com o que poderia ter sido, pra não perder o tempo atual de amar as pessoas. Ângela era exatamente como o amor devia ser: leve, alegre, intenso.

Alice já não sabia mais o que esperar do País das Maravilhas que estava buscando. Aquele caminho longo a fez ver outras coisas que relativizaram em sua cabeça o que, afinal, haveria de maravilhoso num País de Maravilhas. Como aquelas peças que os momentos pregam às vezes, deparou com uma placa que dizia: é por aqui. O medo de errar o caminho se foi, porque sim, ela estava no rumo certo. Apertou o passo feliz, mas com um pouco de nostalgia. Leu a placa porque naquele país esquisito aprendeu a ler. Parecia duro, mas era mole que nem massa de modelar.

"A gente modela, Alice, o país aqui e os países lá fora não estão terminados. São modeláveis", era voz de Arlete, que tinha um olhar distante mas pés bem presos no chão. Não caía e andava leve. Alice partiu sabendo que o País das Maravilhas também haveria de ser modelável, mas sua vontade de encontrá-lo nunca seria modelável.

Encheu-se de si mesma e, com olhar de festa, viu Jonatas e Bruno acenando, e de ver acenos felizes pensou que até logo não é adeus, e que poderia levar consigo alguns dos doces que eles lhe jogavam enquanto ela saía. Alice acabou chorando, mas tinha doces, conselhos, varinhas de condão e óculos bem limpinhos em sua mochila, porque os levava do país esquisito. Acenou de volta e foi correndo, porque agora sabia bem aonde ia chegar. E todo aquele pessoal, entre anjos, rainhas, fadas, guerreiros, estrelas, afagos, doces, todos sentiram saudades de Alice, mas torceram muito pra que ela chegasse ao seu País das Maravilhas. Não porque ele de fato existisse. Mas porque eles sabiam bem que foram eles que a ajudaram a encontrar o que ela sempre esteve buscando.

Uma homenagem a uma terra esquisita, cheia de pessoas maravilhosas, de onde eu, certamente, sentirei muita falta.

sexta-feira, 11 de março de 2011

A culpa é das mulheres

Que o Jornal da Globo não deve ser referência para a construção de opinião de ninguém, isso já sabemos. Willian Waack e sua disposição extraordinária para o imperialismo e a direita, com frases de efeito e caras amarradas, são o testemunho principal de que se trata do telejornal mais posicionado politicamente na Rede Globo. Está à direita e não abre mão. Nem a cobertura do futebol escapa.

Ontem, mais uma demonstração disso. Para este artigo, vou me basear no texto disponível no sítio eletrônico do famigerado jornal, porque, obviamente, não decorei a matéria que vi na TV esta madrugada. 

A chamada anunciava uma tal pesquisa que dizia que as mulheres não pedem aumento, ou pedem aumento menos que os homens. A relação imediata e automática feita pelo jornal foi exatamente essa: as mulheres ganham menos porque não pedem aumento!

Não sei quem fez a pesquisa, o texto no site não diz. Ela afirma que 44% das mulheres entrevistadas já pediram aumento, contra 48% dos homens. Oh, enorme diferença! Eis aí o motivo da histórica desigualdade salarial. Um número mais expressivo revelava que 28% das mulheres pensam em pedir promoção, contra 39% dos homens.

Simplismo e machismo

Independentemente de se ter ou não acesso a dados e a uma reflexão um pouco mais profunda que um pires, parece-me, no mínimo, estúpido atribuir a desigualdade salarial a quem tem mais ou menos coragem de pedir aumento. E pra fechar com chave de ouro, a reportagem apresentava uma gerente de marketing que confirmava o raciocínio a partir do qual a matéria foi organizada: “Eu acho que quem coloca limitação é a própria pessoa. O mercado, hoje, está aberto”, ela dizia, categórica.

A grande mídia adora usar as exceções que confirmam a regra para culpar o excluído ou excluída pela sua própria exclusão. Mas a reportagem e a edição deveriam ter pesquisado um pouquinho mais. Considerar quando e de que forma as mulheres acessaram o mercado de trabalho. Em quais condições. Em que espaços. Em que contexto econômico. Vamos lá, não é tão sofisticado assim. Seria o bom jornalismo.

Na década de 90, por exemplo, auge da globalização neoliberal, enquanto nos países do centro do capitalismo o emprego feminino se expandiu em atividades de jornada parcial, como medida de flexibilização; nos países da periferia, o emprego feminino cresceu como precário e vulnerável, o que acompanhou e acentuou a tendência de informalização e perda de direitos. Esses postos estavam, principalmente, no setor de comércio e serviços, mais instáveis e mal remunerados (vide “Por quem os sinos dobram?”, artigo de Helena Hirata disponível no sítio da SOF).

Segundo dados divulgados pela Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Federal em seu relatório anual 2009/2010, o rendimento médio de homens empregados com carteira de trabalho assinada é de R$1.117,77; enquanto o das mulheres, na mesma posição, é de R$884,82. Entre trabalhadores domésticos sem carteira assinada, no caso dos homens, o rendimento médio é de R$408,96; e o das mulheres, R$301,12. Sabe-se muito bem que, nesta última situação, falamos de um mercado muito majoritariamente feminino.

E é por que elas não pedem aumento que essa situação se mantém?

Vejamos outros dados a serem cruzados com esses primeiros. De acordo com o mesmo relatório, 46% dos homens realizam afazeres domésticos. Entre as mulheres, esse número é de 88%. As mulheres gastam cerca de 25 horas semanais nesses afazeres, enquanto os homens gastam 10.

A taxa de atividade para os homens (proporção da população economicamente ativa em relação à população em idade ativa; considerando-se pessoas com 16 anos de idade ou mais) é de quase 82%. Para as mulheres, 58,5%. E quase 65% das mulheres empregadas estão na informalidade. Todos os dados são da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios).

Lé com cré

Será que esses dados simplesmente não se relacionam? E que finalmente o Jornal da Globo nos deu a razão de toda desigualdade e exploração: a timidez das mulheres para pedir aumento???

É de amplo conhecimento que os salários das mulheres são, em média, 75% do dos homens, ocupando mesma função. Não precisam se esforçar muito pra perceber que elas são a camada mais desprotegida da classe trabalhadora, porque ocupam os postos menos valorizados, em espaços de maior instabilidade, e porque estão majoritariamente em empregos informais, sem qualquer garantia de direito. Quando a mulher é negra, a situação fica ainda mais complicada. A exploração da mão-de-obra feminina precisa ser observada desde um prisma mais completo do que a reportagem simplista e machista propõe.

Este humilde artigo não pretende mostrar historicamente como o mercado de trabalho brasileiro se compôs. Recuperar a entrada das mulheres no mercado de trabalho ajuda a entender por que o salário é desigual. Olhar ao mundo ao redor e ver que o machismo ainda é dos seus pilares estruturantes também ajuda. A inserção subordinada no mercado de trabalho não será resolvida por ação individual de mulher nenhuma, nem por benevolência dos patrões. O combate à desigualdade tem que se dar por política pública e por ação organizada das mulheres, que afinal, sempre foi o que levou às conquistas e à transformação do mundo.

sexta-feira, 4 de março de 2011

A evolução da liberdade?

O Carnaval é das festas mais tradicionais e aguardadas no Brasil. Em cada estado, as pessoas festejam a seu modo, e a alegria unifica tudo numa coisa só. Essa é a imagem bela que temos do Carnaval: bailes, blocos de rua, festas populares, muita gente feliz que, por 4 dias, consegue esquecer seus problemas e se irmana com desconhecidos e desconhecidas que estão sob a mesma condição.

O problema é que, como tudo, o Carnaval não é só beleza não. Todo ano, relatos de excessos cometidos por foliões Brasil afora deixam de orelha em pé qualquer pessoa que tenha algum apreço pelos direitos humanos. Entre tanta prática de barbárie, uma apresenta-se bastante comum: o desprezo pelas mulheres, seus direitos e sua autonomia.

Quem nunca ficou sabendo de uma história carnavalesca que envolveu violência sexual? Pra nem ir tão longe: quantas vezes você soube que, no meio da festa, passaram a mão em fulana ou beltrana? Quantas vezes você viu mulheres serem agarradas à força nessas situações? Pior: quantas vezes você ouviu, diante disso tudo, que “não se leve a mal, hoje é Carnaval”?

A celebração vira justificativa para uma porção de absurdos que, algumas vezes, nem são tolerados fora do contexto de Carnaval, mas sob ele são aceitos como se fossem práticas sociais recorrentes e até premiadas.

Há mulheres que deixam de freqüentar alguns espaços por causa do assédio fora de qualquer limite. Ficam constrangidas diante da imposição de um beijo, de um abraço, de uma mão em seu peito ou em sua bunda. Essas mulheres são mais numerosas do que se imagina.

Isso sem contar que o turismo sexual corre solto nessa época, ainda mais que em outras. Afinal, a propaganda que se faz do Brasil lá fora parece dizer que é a terra das mulheres gostosas e do sexo fácil e descompromissado. Milhares de mulheres sambando peladas, closes ginecológicos nas coberturas de TVs, fotos pornográficas em qualquer site de internet. Isso pra nem falar de como são retratadas as mulatas, pois o Carnaval é mais um momento em que o preconceito e a opressão das mulheres negras se reafirmam com muito mais força.

“Não seja exagerada ou moralista” é algo que certamente ouvirei (ou lerei) por conta desta opinião. Evidente que o Carnaval não é só a parte da falta de limites e da agressão de mulheres, seja pela mercantilização do seu corpo, pela vulgarização da sua imagem ou pela coerção física mesmo. Mas é conveniente tratar deste assunto agora, este ano, mais do que nunca, porque 8 de março de 2011 – Dia Internacional da Mulher – será terça-feira de Carnaval.

“Ô sua mal amada, que tem inveja das mulheres que podem ficar nuas na frente de todo mundo porque são belas”; ou “Deixa de ser histérica, que a maioria das mulheres nem se sente ofendida por nada disso que você está falando”. Mas é que este blog tem um público de esquerda, consciente da vida real, das desigualdades, da opressão, que sabe que as coisas não acontecem por acaso.

A luta das mulheres no Brasil e no mundo é histórica, conquistou muita coisa, transformou o mundo todo. Mas ainda falta muito. Nem precisamos nos alongar pra justificar essa afirmação, basta olhar os conhecidos dados acerca da violência contra mulheres, desigualdade salarial, atribuições domésticas, etc.

Bandeiras caras ao feminismo, como aquela contra a exploração do corpo das mulheres, contra a mercantilização, em defesa do livre exercício da sexualidade e contra todo tipo de violência são altamente contrariadas durante o Carnaval, em salões, blocos e TVs do país inteiro. Não pode ser um momento de exceção: a humilhação, coação e opressão das mulheres devem ser combatidas todos os dias do ano.

E pra quem fica indignada ou indignado diante da completa banalização que se faz do corpo feminino nessa época, que é exposto como se fosse uma lata de sardinha no supermercado, ou um frango assado girando em volta de si mesmo numa padaria, não se sinta ultrapassado ou moralista. Anacrônica é essa forma de ver as mulheres. E uma indignação coletiva e em voz alta pode ajudar a alterar as coisas como estão – porque, como disse Paulo Freire, o mundo não é, o mundo está sendo.

Neste 8 de março, além de guerrear contra a indústria de cosméticos e seus afins, que não se conforma enquanto não tornar nosso dia de luta em mais um dia de comércio, temos esse forte adversário pela frente: a naturalização da opressão e a ideia de “período de exceção”. Mas nós, feministas, que tantas batalhas já vencemos, não tememos essa não. E viva o dia internacional da mulher!